Páginas

Marcadores

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O "TITI-TÁTI"

E as horas eram arrastadas pelos ponteiros daquele relógio antigo que morava num prego na parede da sala, cujo pêndulo dançava no ritmo do tique-taque.

E as crianças de outrora, com os olhos de “bulita” admiravam aquele pêndulo e acompanhavam com a cabeça para um lado e para o outro no mesmo compasso e o chamavam de “titi-táti”. Diziam a elas que o relógio tinha alma e ela é que embalava o pêndulo, daí então arregalavam ainda mais os olhos.

Durante a noite, mesmo solito na sala, o velho relógio continuava seu tranco e era quando mais se ouvia, de hora em hora, seu gongar quebrando o silêncio e as crianças de outrora sentiam medo de passar por lá.

Os números, que na verdade eram letras (I-X-V) demarcando as horas, eram magras e elegantes. Usavam um traje preto impecável que as fazia sobressair, contrastando com o branco do mostrador. Os ponteiros dourados também eram magros e elegantes. O menor era mais preguiçoso.

Eram companheiros do “titi-táti” um espelho emoldurado com madeira envernizada da mesma espécie da dele, um retrato oval e um porta-chapéus, também de madeira pintado de preto.

Desde que foi pendurado lá, saiu somente uma vez para ir ao médico, mas o mal teve cura e logo voltou para a harmonia da sala e alegria dos companheiros de parede.

E as salas de hoje não ouvem mais as gongadas. A nova geração do “titi-táti” é silenciosa e as crianças de agora, não param para balançar a cabeça à sua frente e sim curvando a espinha a teclá-lo freneticamente, pouco se importando se marca ou não as horas.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

QUEM SABE UM MATE?

Será que vale à pena
ficar remoendo solito
com o olhar no infinito
descabelando a melena
pra branquear antes do tempo?
Deixa de lado os contratempos
porque a vida continua
mesmo que nos cravem a pua
não dá pra frouxar os tentos

Quem sabe um mate te faça bem
e ajude a esquecer a mágoa?
Quem sabe a erva e a água
te faça esquecer o alguém
que te causa esses suspiros?
Pois o tempo faz seu giro
e nos mostra a realidade
talvez sem deixar saudade
e é aí que me refiro

Quem sabe daqui uns dias
te venham ventos melhores
e aqueles momentos piores
deem lugar à alegria
que sempre viveu contigo?
Segue batendo estribo
e não leva o caso a sério
pois para um índio gaudério
é muito fraco o motivo

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

CARINHO E BÓIA QUENTE

Foto Própia

Pra banda de um fim de tarde
vinha sovado da lida
meu zaino todo suado
o cusco mais que assoleado
mas a guaiaca sortida

Matei a sede dos dois
no passo do carrapicho
refresquei minhas canelas
e o pó só tirei da goela
com a água benta do bolicho

Primeiro fiz sinal da cruz
e pro santo uma oferenda
as contas botei em dia
comprei doce pras crias
e um presente pra prenda

E já de noite no rancho
ganhei beijos e abraços
comi uma boia quente
carinho pra um vivente
se refazer do cansaço

O cusco de pança cheia
e o zaino já na cocheira
amanhã emendo o laço
ensebo de novo o basto
e sento o fio da carneadeira

Daqui uns dias outra jornada
sem conhecer o lugar
vida de peão é assim
mas o que conforta enfim
é ter pra onde voltar

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

MALUDUCO

       No cambiar do dia despertou um vento até que frio para o mês de novembro.
         - Que tempo maluco! Alguém comentou.
         - Maluco ou caduco? Retrucou o velho.
         - Como?
         - Ora, vocês vivem dizendo que velho quando faz alguma coisa em desacordo está caduco. Maluco é outra coisa.
         - E o que tem a ver com o tempo?
         - O tempo não é mais o mesmo. O tempo passou e ninguém notou. Também está velho, portanto c+a = ca,  d+u = du,  c+o = co, CADUCO, entenderam?
         - Ah! Não vem me dizer que agora vais virar filósofo, ou nesse caso o certo é virar maluco, m+a = ma, l+u = lu,  c+o = co, MALUCO?
         - Vão se “afumentá”. Vocês ainda não saíram do coeiro e querem saber mais que todo mundo. Isso pra mim sim que é maluquice. Quando falta argumento dizem que a gente é caduco. Um dia vocês dirão: o velho tinha razão.
         Quando esse dia chegar, os malucos estarão caducos e os caducos tentando aconselhar os malucos.
         Bah! Agora já nem sei o que sou. Talvez seja MALUDUCO.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

E ENFIM, CHEGA O DIA

Foto de Giancarlo M. de Moraes
Quando o mês de outubro já deixava a estrada, e o novembro despontava na curva, as conversas sobre o Natal e Fim de Ano eram mais frequentes.

Isto era um prenúncio de que as férias escolares também estavam próximas e a euforia recheada de ansiedade tomava conta da gurizada. Tanto os da cidade quanto os lá de fora.

Aqui a gente se tornava bonzinho, mais obediente do que de costume, mais atencioso, mais cumpridor das tarefas. Passava mais tempo em volta dos livros.

Os de lá, “ardilavam” brincadeiras e safadezas. Faziam dieta para os cuscos com o propósito de que ficassem leves ao correr as lebres e desentocar tatus.

Pegavam mais seguido os cavalos que andavam de lombo meio duro e seriam sovados nas pescarias e nos passeios. Ah! Os caniços e as linhas também tinham retoques. Troca de anzóis rombudos, chumbadas, maçarocas...

As forquilhas e os “corinhos” para bodoque tudo já pronto, esperavam as borrachas que os daqui levariam.

A paisagem de lá parece que sabe quando a gente vai e muda a roupa ali pela primavera e se conserva cheirosa a nos esperar. O sol nem se fala, a lua então... Até os vaga-lumes acham que são estrelas.

E enfim, o dia da chegada lá. Parece que nada mudou da última vez, porque com o alarido do encontro a gente não se prende aos detalhes, mas alguém notou o poste da luz.

As férias a partir de agora, não terão mais aquelas noites de picumã com cheiro de querosene.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

LAÇO

Foto de Giancarlo M. de Moraes

Laço velho companheiro,
das minhas lidas eternas,
meu braço que te governa
até acharmos o jeito,
pra uma armada de respeito
sem pegar mão, cola ou perna.

Às vezes te entreveras
no terreiro co’as crianças,
te sustentando nas tranças
num galho de cinamomo,
onde o piá pega no sono
quando em ti se balança.

Enrodilhado te guardo,
ou te apresilho nos tentos,
onde aguardas o momento
pra ser usado na lida,
ou então ir pra avenida
dia Vinte de Setembro!

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

TOPETUDO

Foto própria
- Desce já daí guri. Quantas “veis” preciso “dizê” que “pêsco” verde “fais” mal? “Óia” o que aconteceu com a “fia” da “cumadre”, não morreu porque não era hora!

- Pois é, se empanturrou tanto que quase “entroncou”. Eu não sou esganado como ela e não faço mistura. Não precisa tá enchendo o saco.

- Não me “arresponde” e desce já, ou preciso “apanhá u’a” vara?

De lombo duro o piá foi descendo lentamente e sorrateiro guardava no bolso algumas frutas inchadas.

- Vai “vê” se tem água no cocho dos porco e depois apanha “u’a” vassoura pra “varrê” o forno e vai “cortá” “azunha” que já tá igual um tatu. E por “falá” em tatu, não me vá pra escola com o nariz sujo.

- Tá, e o que mais?

- Não me “arresponde”. Será que.... “Óia”! “Teusirmão” mais “véio” nunca “foru” maroto. Te ajeita senão...

- Tá bem, já to cansado de ouvir isso.

- Não me “arresponde” tá cansado e não aprende? “Óia” a vara!

- Tá aí a diferença minha “fia”, resmungou a vó que debulhava milho. “Co’s” mais moço não havia conversa, a vara pegava logo. Tem que dá mimo mas tem que “sê” mais enérgica. O bate boca só deixa o miúdo cada “veis” mais topetudo.

- Ah! Mamãe, não venha “querê” “ensiná” o padre a “rezá” missa.

- Tá bem, depois não adianta “chorá” o leite derramado. To falando porque criei e eduquei tu e teus oito irmão e nunca passei vergonha por vocêis. Também nunca “iscundi” nada do teu pai e as varadas que “levaro” foi um santo remédio. E não me “arresponde”!

- Esses “véio”...!

- Tu já “corto” “azunha”?

Mastigando os pêssegos o guri gritou de longe:

- Ainda não tive tempo, será que tu não entende?


- Não me “arresponde”, “óia” a vara!
     

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A CARTA

Foto de Jorge Luiz Laranjeita

Cai a noite. Lá no fundo do campo, um rancho deixa sair pelas frestas a luz de um lampião que na cabeceira da cama de uma prenda alumia as páginas da carta que o namorado escreveu lá do quartel da cidade.

(Minha “princeza inesquesivel oji pegu” na pena...)

O papel perfumado ameniza o cheiro da fumaça. Os olhos vão até o fim da linha e voltam com ansiedade devorando as palavras enquanto o coração acelera o compasso.

É a primeira carta desde que ele foi. Pouco romantismo e muitas “milicadas”. Novidades sobre a nova vida, mas mesmo assim ela vai saboreando as palavras. Fecha os olhos e imagina seu bem-amado teso dentro de uma farda verde-oliva.

As horas vão passando puxadas pelo canto de um grilo e a prenda volta mais uma vez ao início da carta. Lê e relê, acaricia o papel e na sua cabeça vai preparando a resposta.

Amanhã, quando o mano for na venda vai pedir que traga papel e envelope para escrever ao recruta, conforme seu pai chama o rapaz (o que ela não aprova).

O sono não chega e mais uma passada de olhos na carta.

O grilo silenciou seu canto e o lampião vai diminuindo a luminosidade por falta de querosene e a luz mal e mal chega até as frestas.

          .......................................................................

Agora ela dorme com a carta sobre o rosto e o lampião fumega queimando o pavio.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

FIGURAS NO CÉU

      
      



Foto de Gilberto Moraes Junior
Depois do almoço, a gurizada foi sestear no assoalho da carreta à sombra do tarumã.

As nuvens brancas povoavam o céu azul, qual um rebanho de ovelhas. Aos olhos dos guris elas iam formando figuras conforme o vento moldava. Cavalos, leões, gatos, coelhos, velhos, papai noel, patos, árvores, ursos e ovelhas, é claro, além do que a imaginação de cada um identificava.

Dentre os “sesteadores” havia um rabugento chato, que não concordava com o achado dos outros e forçava que concordassem com o que ele descobria. Se um visualizava uma cabeça de leão, ele teimava que era uma cabeça de macaco.

A brincadeira conjunta terminou para ele quando foi expulso da carreta para que fosse sestear em outra sombra e que talvez de lá o ângulo de visão fizesse com que as figuras teriam a mesma forma que o pessoal da carreta via.

A turma daqui continuava a descobrir figuras e comentar em voz alta, até que combinaram ficar em silêncio para dar um gelo nele enquanto lá ia descobrindo e explicando o que via, porém sendo ignorado pelos demais.

O silêncio surtiu efeito. Passado um tempo, o rabugento foi se chegando novamente para a carreta pedindo para continuar na brincadeira.
   
Depois de uns “sins” e uns “nãos” ele voltou a deitar no assoalho no lugar de onde fora expulso. Permaneceu calado.

Um dos guris piscou o olho para os demais e disse:

- Agora vamos deixar o rabugento descobrir uma figura?

Houve concorde geral.

Olhos “campeando” o céu, o rabugento num salto disse:

- Olha ali, perto daquela nuvem bem grossa a cabeça de um burro!

- Ah, ah, ah, ah! Até que enfim temos que concordar contigo. É o teu focinho sem “tirá” nem “botá”. Ah, ah, ah, ah!

Ele apeou da carreta e deu uma rajada de esterco seco de ovelha nos outros, terminando com a sesteada.

sábado, 27 de setembro de 2014

A VELHA E A GAVETA

      


Numa tarde chuvosa, aquela senhora cuja idade se refletia no “cocó” do cabelo, tirou para por ordem nas gavetas, coisa que há muito já vinha planejando, mas não achava tempo. Muita quinquilharia acumulada.

Óculos quase escapando da ponta do nariz, o gato no colo, a cocota no ombro e o cachorrinho mimoso fazendo o chinelo de travesseiro eram seus companheiros. O velho roncava numa cadeira preguiçosa. Os cachorros dele ficavam do lado de fora.

Ela tirou a primeira gaveta do lugar e despejou tudo sobre a mesa. Começou a separar o útil do ocioso, ou melhor, catar, catar, ciscar...

Espantou o gato do colo para que a gaveta ali ficasse, pois devolvia para ela os objetos selecionados como aproveitáveis. O gato quando pulou para o chão, deu um tapa no cachorrinho e foi para o colo do velho que continuou roncando.

Lá fora os pintos abrigavam-se contra a casa, retesados como soldados na posição de sentido. Já por sua vez os patos, ou espanavam as penas ou chafurdavam as poças d’água.

E aquela senhora de “cocó” no cabelo, continuava a ciscar na gaveta que ia enchendo de novo. Instintivamente assobiava notas sem formar uma música.

O velho roncava, o gato no seu colo ronronava, o cachorrinho mudou a posição, agora já ocupando somente um chinelo e a cocota tentava imitar o assobio da velha.

E a gaveta engolindo novamente a quinquilharia.

Uma trovoada acordou o velho que atirou longe o gato e reclamou que já estava na hora do café, que apetecia bolo frito.

A velha continuou ciscando e a gaveta enchendo.

Agora a cocota subiu do ombro para o “cocó” do cabelo da velha e começou a catá-la e puxar com o bico a alça dos óculos. O gato tentava pular novamente no colo do velho que o afastava com as costas da mão.

Lá fora a chuva continuava, só que mais forte. Uma goteira iniciou a cadência sobre a cômoda, fazendo que o velho levantasse, a mando da velha, para colocar uma bacia aparando a água.

Voltou para a cadeira preguiçosa e continuava reclamando o café com bolo frito.

A goteira enchia a bacia e a velha de "cocó" enchia a gaveta.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O CULEPE DO GURI

        
O sol já havia levado a sombra do mato para o outro lado da estrada. O dia muito perto de sumir pelo horizonte e a picada ainda por passar.

Pelo pescoço do petiço o suor escorria, o mesmo acontecendo por debaixo do arreio e deslizando pelas costelas.

Havia fama de que ali  “às Ave Maria” aconteciam fatos estranhos no interior da picada. Estórias e mais estórias eram contadas, inventadas e renovadas e aumentadas.

O guri por mais que tocasse o petiço, não atravessaria a tempo claro por aquele “túnel” feito a facões e foices na necessidade de um caminho mais curto.

Ele se distraiu lá pelo bolicho onde dois tauras se desafiavam no jogo de bocha e quando alçou a perna para levar as compras pra casa se deparou com o sol já quase tocando a crista da coxilha ao longe.

Sentiu a garganta ressecar, um sufoco no peito e chamou no rebenque o petiço para tirar de suas patas o atraso da hora. O cusco corria a uns dois metros à frente e com rápidas paradinhas olhava para trás.

Após a curva da estrada, no lusco-fusco, saltou aos olhos do guri a picada com sua boca aberta e a goela comprida e escura.

Andou um pouco com os olhos fechados. Quando abriu, não viu o cusco e o petiço aguçava as orelhas.

Pensou voltar e olhando para trás avistou o cusco aguando uma macega. Assobiou pra ele chamando pelo nome.

Um pé de vento vindo por suas costas provocou estalos no mato e levou seu chapéu rolando picada adentro como se estivesse sendo puxado por alguém. Seus cabelos arrepiaram.

O guri meteu a mão no bolso segurando o canivete, quadrou um pouco o corpo no arreio, atiçou o cusco, cutucou com o garrão o petiço, fechou os olhos e num galope, sem chapéu seguiu.

Na sua imaginação, algum fantasma estaria experimentando seu chapéu e ele ia sendo engolido aos poucos pela picada, de onde talvez jamais saísse.

Por vez tirava a mão do bolso para conferir se a mala com as compras estava na garupa e mantendo os olhos cerrados, assobiava para o cusco.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

APARIÇÃO


O dia foi meio turvo,
a noite chegou num breu,
e recolhido ao meu eu,
campeava o sono num catre.
De repente o cusco late,
em direção a cancela.
Espiei pela janela
e avistei com espanto,
uma mulher toda de branco,
trazendo acesa uma vela.

Senti um arrepio no corpo
e ressecou minha garganta.
Representou-me uma santa,
passando para o galpão
e daquela vela na mão,
que tinha um pavio comprido,
caíam pingos coloridos,
que reluziam no chão,
formando um longo cordão,
junto a cauda do vestido.

Levitou por um momento,
ficando lá, sobre o forno
e veio um perfume morno,
como se fosse um incenso.
Numa rajada de vento,
sumiu pelo arvoredo.
Juro que não senti medo,
pois eu tenho devoção,
iniciei uma oração,
assim encruzando os dedos.

Rezei três Ave Marias,
um Pai Nosso e um Glória ao Pai.
A tal mulher não vi mais,
porém continuei rezando.
Depois fiquei meditando
e não quis ir ver lá fora.
Me pergunto até agora,
ainda meio bisonho,
será que eu tive um sonho,
ou foi mesmo Nossa Senhora?

domingo, 7 de setembro de 2014

NO TEMPO QUE O TEMPO DAVA TEMPO


Há muito tempo, um avô falava para o neto sobre aquele tempo em que todos tinham tempo.

Mesmo durante as revoluções, achavam tempo para tomar um mate, falar do tempo e dar um tempo para avançar ou recuar.

Tempo que o fio de bigode era documento.

Tempo que fez com que sua melena ficasse branca e rala e ele teve tempo para notar.

Tempo que teve tempo para amar a prenda, para fazer muitos filhos, (pois era um tempo em que se podia ter muitos filhos).

Tempo para cuidar dos negócios e ainda tempo para domar os cavalos.

Assim, aquele avô passou um bom tempo falando com o neto, aproveitando que o neto ainda tinha tempo para ouvir sua prosa relatando como era naquele tempo.

Passado algum tempo, o tempo levou o avô e depois de um tempo, o neto pediu ao pai para que contasse alguma coisa sobre o tempo em que foi guri, porém a resposta do pai foi de que não dispunha de tempo.

Com o tempo, o neto teve um filho e o seu tempo não deu tempo para repassar aquelas histórias que há muito tempo seu avô contava sobre o tempo dele.

Hoje, o filho do neto nada sabe sobre o tempo de seus antepassados e passa o tempo todo reclamando do tempo que o computador demora para lhe dar a resposta.

O jeito é termos paciência e aguardar nossa hora chegar, pois esta chegará mesmo que não tenhamos tempo.

Aquele tempo se foi com o tempo.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CLARO QUE EXISTEM CERTAS HORAS...

 Num fim de tarde após ter vindo uma chuva, o velho com os braços encruzados sobre a cabeça do moirão e com o pé no primeiro fio da cerca, contemplava a paisagem até onde a vista lhe permitia.

O vento de frente forçava tirar-lhe o chapéu, cujo barbicacho firmava-se naquele queixo onde era cultivado um cavanhaque tordilho.

Um pouco à distância e a esquerda do capão de eucaliptos, fumegava o cano do fogão no rancho do vizinho mais próximo, seu compadre, amigo desde guri, com quem repartiu muitas façanhas pelas andanças da vida.

Conforme o vento foi ficando mais calmo, as formigas de asa “decolavam” no potreiro e num frenesi iam pegando altura que o velho até brincou com ele mesmo de que elas iriam “aterrissar” no arco-íris. Isto as que se escapassem do bico das galinhas e dos pássaros.

Flechando em direção ao açude, meia dúzia de patagônias rasgavam o espaço e já voltando de lá, um socó batia lentamente suas asas satisfeito como quem já tivesse jantado.

No cinamomo da frente, um cardeal e um canário da terra encerravam suas jornadas cantando melodiosamente. 

No palanque alto da porteira, o joão-de-barro fazia um alarde sobre o teto de sua casa dançando para a parceira, também se despedindo do dia e prenunciando bom tempo para amanhã.

O gado manso ia chegando para perto das casas. Iniciava-se o ritual de prender os terneiros.

A porcada grunhia enquanto um peão atrapalhado pela criação no terreiro carregava dois latões com farelo. Alguns frangos de rinha voavam para beliscar nos latões, na esperança de encher o papo.

O velho já tinha descruzado os braços, mas o pé ainda continuava sobre o arame. Agora com as mãos encruzadas sobre a cabeça do moirão aproveitava para um cochicho com o Patrão Maior num agradecimento humilde e bem campeiro.

Enquanto a paisagem foi tornando-se sombria e seus pensamentos perdiam-se pelas covancas da memória, permanecia ali até que ouviu:
        
- O MATE TÁ PRONTO, VEM!

sábado, 30 de agosto de 2014

ENCHENDO OS OLHOS DE LUA

A semana era a última de inverno e a lua no fim da crescente, preparava-se para entrar cheia na primavera. E enfim entrou.

O céu para homenageá-la, combinou com o vento da tarde que repontasse as nuvens e trouxesse tantas quantas estrelas ele pudesse.

O sol também naquele final de dia acelerou o tranco, mas mesmo assim ainda pode ver no horizonte oposto o esplendor da lua cheia que lambia o campo, as árvores, a quincha dos ranchos que iam projetando suas sombras na primeira noite da nova estação.

Nas ruínas da tapera, uma coruja mandou sua mensagem que talvez também fazia parte da combinação do céu com o vento.

Mais tarde um urutau cantou no mato deixando o piá com medo. Um ouriço serviu-se de um galho da guajuvira, como ponte, para vir aninhar-se na forcada de um pessegueiro bem perto do forno. Foi sentido pelo cusco que fez um alarido alucinante, deixando o piá ainda mais encolhido no colo da vó.

Sua mãe estava na cozinha e com a janta quase pronta. O mano havia ido pescar com o pai que segundo sua “filosofia” campeira, a primeira noite de lua cheia era boa de peixe.

Ralhar com o cusco pouco adiantou, pois estava encafifado em pegar o ouriço e tentava subir no pessegueiro, chegando às vezes até mesmo morder o tronco. Os cuscos da vizinhança também se manifestavam lá de suas casas.

Uma aragenzinha mais fria fez com que a vó puxasse a barra do vestido para cima e enrolou nos pés do piá que aproveitou o dengo e queria o bico. A mãe contestou porque não era para dormir antes de comer.

Para que ficasse acordado, a vó lhe mostrava a lua e dizia que as manchas era o São Jorge montado em seu cavalo e cravando a lança no dragão.

As horas foram passando e as sombras vagarosamente mudavam sua posição. As corujas silenciaram, o cusco aquietou-se com a partida do ouriço, o piá jantou, chupou o bico e dormiu já no colo da mãe. A vó cochilava numa cadeira baixa forrada com um pelego.

Lá no açude, o pai e o mano enchiam os olhos da prata refletida na água onde boiadeiras balançavam com a rabanada dos peixes.

Quando uma estrela cadente riscou o céu, o pai disse que ela estava apontando o caminho da casa e determinando a hora de “encolher” as linhas.

O mano, louco de faceiro, pendurou no ombro a “enfiada” com as traíras que branqueavam a barriga num banho de lua.

sábado, 23 de agosto de 2014

À SOMBRA DE UM UMBU




O mesmo cenário.
No banco sob o umbu que sombreava todo o lado leste do bolicho, aquele velho frequentador aposentado, desde antes do meio dia somava tragos de cana pura

Seu cusco como sempre, ficava deitado próximo ao cavalo palanqueado, cujo beiço inconsciente tremia pelo impulso de um cochilo. O cusco também ressonava e alternava as espiadas para o cavalo e o dono. Por vezes levantava a cabeça e aguçava as orelhas quando ouvia um barulho de pratos ou quando os cuscos da casa farejavam à sua volta.

Os outros fregueses, já acostumados com a cena, chegavam e saiam sem dar muita atenção à figura pitoresca, apenas zombavam que o pudim estava pronto.

Com suas pilchas em remendos estirava-se contra a parede a falar como se alguém lhe fizesse companhia. O matungo com as garras sobre o lombo exibia as costelas tais teclados de gaitas pianadas, assim como as do cusco.

Mesmo sem ser cumprimentado, ele dirigia um “buenas” ou um “te logo” para quem chegasse ou saísse.

Seus lábios já demonstravam um certo cozimento pelo álcool e as bochechas com barba rala, pareciam tomates e os olhos moldurados por papuças com finas veias roxas.

Pai de dois filhos e uma filha, que já trabalhavam na cidade, vivia com a esposa, que uma vez por semana viajava para visitar a turma e levar uns agrados para os netos.

Quando a mulher estava por casa, ele raramente aparecia no bolicho e não se demorava quando ia, apenas fazia as compras e levava “combustível” pra beber em casa.

No período das “férias” como dizia, tirava os dias para se empanturrar de trago, obrigando o cusco e o cavalo a um jejum forçado.

Seu rancho virou tapera e sua morada agora se resume num monte de terra com uma cruz sem inscrição, sob a sombra de um umbu, num canto do cemitérinho, onde raramente passa alguém para um “buenas” ou “te logo”.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

AO CAVALO




Tu sabes bem meu cavalo
que as esporas que uso
não é pra fazer abuso
e nem para machucá-lo
é mais para um pacholeio
quando me sirvo do arreio
com meu entono de galo

Parceiro de toda a lida
te considero meu pingo
seja chorando ou rindo
vamos tranqueando a vida
e quando o Patrão do Céu decidir
que um de nós tem que partir
será dura a despedida

Se acaso tu for primeiro
pasteja lá pelo céu
enquanto aqui tranço um sovéu
nesta labuta de campeiro
pois se algum desgarrado reste
aí na invernada celeste
reserva pra nós parceiro

sábado, 26 de julho de 2014

DE GURIS E CAVALOS

     

Da porteira até o capãozinho de mato a estrada era plana e fofa de areia. Dava mais ou menos uns trezentos metros de reta.

Fazia parte da lida dos guris, nas horas frescas do dia, passear os parelheiros como parte do apronte “pralguma” carreira logo depois das colheitas.

Era uma das tarefas que mais lhes despertavam o interesse, pois além de levarem como se fosse uma brincadeira, apesar da responsabilidade que tinham, também rendiam alguns trocados vez por outra. 

Claro que meio as escondidas uma que outra carreirita mais acirrada com apostas cujos donos nunca ficaram sabendo, era debulhada em meio à poeira.

Um petiço gateado, batizado por Papatudo, dava sufoco ao resto da cavalhada. Conforme o peso que levasse no lombo as rapaduras, balas e até mesmo uns cigarros feitos, recheavam a algibeira da bombacha do “tratador”.

Dentre outros animais, destacava-se uma égua zaina, comprida, caneluda, meio desengonçada porém solta de pata que a gurizada batizou de Avestruz. Essa sempre deixou o Papatudo com as ventas cheias de poeira.

Numa manhã que a cerração levantou, os guris cabresteando a cavalhada seguiam rumo ao partidor pra mais um galope nos pingos quando um dos animais se empinou tomando o cabresto e cascou-se campo fora bufando e atirando as patas.

Cruzou por uma picada estreita no capãozinho, contornou um pequeno açude e voltou em direção à porteira. Um dos guris segurava os demais cavalos enquanto os outros dois corriam sem sucesso na busca do fujão.

Esbarrando na porteira, o cavalo deu alguns passos de volta, trocou orelhas, farejou o chão e foi aumentando o passo e quando chegou na estrada, mais ou menos onde era o partidor, embodocou-se e cascou-se a correr, sem sair dela.

Lá pelos duzentos e poucos metros foi diminuindo a corrida. Parou, virou a cabeça para trás, trocou orelhas de novo e por conta foi banhar-se no açude.