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sábado, 26 de julho de 2014

DE GURIS E CAVALOS

     

Da porteira até o capãozinho de mato a estrada era plana e fofa de areia. Dava mais ou menos uns trezentos metros de reta.

Fazia parte da lida dos guris, nas horas frescas do dia, passear os parelheiros como parte do apronte “pralguma” carreira logo depois das colheitas.

Era uma das tarefas que mais lhes despertavam o interesse, pois além de levarem como se fosse uma brincadeira, apesar da responsabilidade que tinham, também rendiam alguns trocados vez por outra. 

Claro que meio as escondidas uma que outra carreirita mais acirrada com apostas cujos donos nunca ficaram sabendo, era debulhada em meio à poeira.

Um petiço gateado, batizado por Papatudo, dava sufoco ao resto da cavalhada. Conforme o peso que levasse no lombo as rapaduras, balas e até mesmo uns cigarros feitos, recheavam a algibeira da bombacha do “tratador”.

Dentre outros animais, destacava-se uma égua zaina, comprida, caneluda, meio desengonçada porém solta de pata que a gurizada batizou de Avestruz. Essa sempre deixou o Papatudo com as ventas cheias de poeira.

Numa manhã que a cerração levantou, os guris cabresteando a cavalhada seguiam rumo ao partidor pra mais um galope nos pingos quando um dos animais se empinou tomando o cabresto e cascou-se campo fora bufando e atirando as patas.

Cruzou por uma picada estreita no capãozinho, contornou um pequeno açude e voltou em direção à porteira. Um dos guris segurava os demais cavalos enquanto os outros dois corriam sem sucesso na busca do fujão.

Esbarrando na porteira, o cavalo deu alguns passos de volta, trocou orelhas, farejou o chão e foi aumentando o passo e quando chegou na estrada, mais ou menos onde era o partidor, embodocou-se e cascou-se a correr, sem sair dela.

Lá pelos duzentos e poucos metros foi diminuindo a corrida. Parou, virou a cabeça para trás, trocou orelhas de novo e por conta foi banhar-se no açude.
        

quarta-feira, 23 de julho de 2014

OFERENDA


Pra ti Negrinho deixei
no moirão um naco de fumo
pra ver se descobres o rumo
do petiço do meu piá
que há dias anda tristonho
de noite chama por ele em sonho
acorda e pega a chorar

Já acendi uma vela
em cada canto da cocheira
e na saída da porteira
vou encruzar o buçal
é uma velha simpatia
pra que dentro de três dias
me repontes o animal

E se acaso o destino
do petiço foi a morte
por alguém que vaga sem norte
com a maldade na garupa
eu direi para o piazinho
que tu campeiro Negrinho
vais punir quem teve culpa

Mas sei que voarás com o baio
para atender meu pedido
e o petiço sumido
entrará em nossa cancela
e eu levarei pela mão
o piá no mesmo moirão
pra te ofertar fumo e velas

domingo, 13 de julho de 2014

O QUINHÃO DAS QUITANDAS


Sentado no recavém da carreta com as pernas penduradas, o piá se “entertia” contando os rastros dos bois que ficavam moldados na areia da estrada.

Vez por outra quando algum dos bois estercava ele se preocupava contar quantos rastros eram atingidos pela descarga intermitente, procurando não esquecer a conta pra ver o próximo boi que aliviasse o mondongo, como dizia, venceria ou perderia na quantia de rastros tapados.

O bodoque pendurado no pescoço era seu inseparável parceiro, bem como a munição para o mesmo no bolso da bombacha.

Sob a sombra da carreta, o casquinho resfolegava. Por vezes dali saía pra farejar uma macega ou mijar no pé do moirão. A carreta prosseguia, tendo o cusco que aumentar o tranco pra voltar pra sombra. O piá achava engraçado o animalzinho correndo de língua de fora e alternando a corrida ora em quatro, ora em três patas. Quando chegava perto, balançava o rabo pitoqueado logo após o nascimento, o que fez que o batizassem de Toquinho.

Na lavoura gorduchas melancias e melões eram colhidos cuidadosamente e carregados até a carreta para no dia seguinte engrossar a quitanda na beira da estrada principal, sob uma ramada de taquaras e folhas de coqueiro. Ali permanecia junto ao avô até que o “sortimento” fosse vendido.

O piá já era bastante conhecido pelos passantes que dedicavam atenção e carinho por ser ele destorcido, educado e bom de prosa. As melancias e melões deles eram as melhores do planeta. Isso ele repetia para cada um que parasse para comprar. A gorjeta não era contabilizada no montante da venda. Era o quinhão dele que depois gastava no bolicho em rapaduras, balas, bolitas e alguma lembrancinha pra vó, pra mãe e pra mana.

Já de volta ao rancho contava as novidades da “viagem” e na hora de ir para a cama queria saber do avô que dia iriam de novo, pois tinha visto algo lá no bolicho que não trouxera porque a guaiaca d’uma hora pra outra, sem ele querer lhe faltou com os pilas.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

COMIGO NÃO BICHO VÉIO


Numa manhã após a forte cerração, o sol ao refletir seus raios pelo campo, as macegas ainda guardavam pequenas gotas que reluziam qual vidrilhos.

Montando seu petiço “Cigano” o piá seguia no trilho que fora capinado pelo casco do próprio animal nas idas e vindas do dia a dia para a escola.

Quebrou um pedaço da vara de alecrim que usa como “rebenque” e colocou na boca fantasiando um palheiro que fumegava com a fumacinha do bafo causado pelo frio. O petiço também baforava mas não fumava, só mascava o freio.

De vez em quando a manga do casaco era usada para limpar a melequina que escorria do nariz e insistia entrar na sua boca.

Retorceu-se nos pelegos para ver se o focinho do petiço também pingava. Só viu a baba espumando no canto da boca a escorrer pela barbela do freio.

Uma perdiz, já com o motor aquecido, resolveu exercitar as asas e alçou voo bem abaixo do focinho do “Cigano” provocando um susto e fazendo com que negasse para um dado, se empinando saindo do trilho e virando a cabeça na direção do rancho pronto para disparar.

Aquele resto de “rebenque” baixou pela anca do petiço levantando fumaça enquanto a rédea era sofrenada com perícia de campeiro e o xingamento rústico num linguajar chulo.

Tudo resolvido, petiço no trilho novamente com a cabeça rumo à escola, o piá ajeitou o chapéu e o corta-passo que trazia a meia espalda e resmungou novamente com o “Cigano” dizendo:

- COMIGO NÃO BICHO VÉIO, AQUI TEM BRAÇO!