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quarta-feira, 28 de junho de 2023

ENTRE O REAL E O SONHO

A criança que eu fui

às vezes em mim desperta

não tem dia nem hora certa

quando vejo sou guri

cavalgando aqui e ali

no lombo do devaneio 

sem os pelegos e o freio

na querência onde nasci 


Não escolho itinerário 

nas fantasiosas jornadas

 recorro muitas estradas

e corredores sem fim

mas volto pra donde vim

pois o pingo sabe o rumo

e na garupa me arrumo

porque o guri quer assim


Sem ter hora pra voltar

prossigo a cavalgada

e pelo meio da estrada

reparto uma tropa de nilos

e num galopar tranquilo 

vislumbro o rancho tristonho

e entre o real e o sonho

o guri tira um cochilo


quinta-feira, 22 de junho de 2023

O PESAR DE UM DOMADOR

Vou aposentar as esporas

sentenciou o velho ginete

estou perdendo o cacoete 

já não sou mais o que era

foi-se a gana deste cuera

que quando via uma potrada

tenteava todas as boladas

como um tigre na espera


Também de hoje em diante

só encilho cavalos mansos

dando pras esporas descanso

e serviço pra o garrão

no caso de uma precisão

num aperto de mangueira

ou em largada de carreira

que é um vício deste peão


Apesar dos contratempos

boa saúde ainda tenho

e se às vezes enrugo o cenho

não  é por dor ou por medo

é admirando o enredo

em que se envolve meu neto

gineteando desinquieto

um cavalinho de brinquedo


Assim que foi sua prosa

pra peonada no galpão

na presença do patrão 

numa atitude de respeito

sentindo dentro do peito

o coração corcoveando 

como um bagual se domando

aos "tirão" num parapeito 


A tristeza em seu rosto

trouxe lágrimas à tona

pois foi criado na doma

ginetaço de valor

e nesta lida professor

por este Rio Grande afora

eternizando as esporas

na função de domador


Outros ginetes virão 

para domar sem esporas

a filosofia de agora

não permite a doma antiga

e ainda tem lei que obriga

fazer curso pra domar

mas temos que acatar

pra que o Rio Grande prossiga 



sábado, 17 de junho de 2023

CULPA DA LUA

 

Clareando o horizonte

lá longe desponta ela

bem cheia e bem mais bela

trazendo pra noite o encanto

e com a quincha do rancho

tal uma colcha prateada

dou um beijo na amada

e em carinhos me desmancho 


Uma brisa passeia na noite

em companhia da lua

e um aroma flutua 

das flores da laranjeira 

uma coruja campeira

dá um chiado mas não voa

e na beira da lagoa

um sapo chama a parceira


Noite de lua cheia 

onde os duendes esvoaçam

noite que as mágoas passam

como a água de um rio

e no cenário luzidio 

um cusco chega de longe

que só Deus sabe de onde

veio pra farra do cio


O romantismo da noite

não deixa almas vazias

e antes de clarear o dia

um grilo "ergue" o volume

sai num voo um vaga-lume

com todo o resplendor 

pra encontrar um amor

ou sentir da lua ciúme 


terça-feira, 6 de junho de 2023

PRA UM ACONCHEGO


Só faltam cinco léguas 

Não te entrega meu tordilho

prometi pra prenda e os filhos

que no fim do mês iria

pra passar uns vinte dias

somente em roda do rancho

como disse nos garranchos

num bilhete pras gurias


Vou aproveitar a folga

pra dar e receber carinho

no aconchego do ninho

no rancho que Deus me deu

e também me concedeu

a felicidade a saúde 

e o amor por virtude

para amar tudo que é meu 


segunda-feira, 5 de junho de 2023

JUCA TIGRE

 


Juca Tigre ganhou este apelido porque teve que viver refugiado pelos matos, na costa dos rios, por certo tempo.

Tudo começou de tardezita, por causa de um crime ocorrido num rincão desse nosso Rio Grande bagual onde  tinha chegado há poucos dias.

O filho de um homem rico, influente do lugar, depois de se aproveitar de uma menina de família pobre, achou por bem matar a guria.

Ah destino cruel! Logo correu o boato de que aquela barbaridade só poderia ter sido obra do tal estranho barbudo. A fofoca correu solta e ganhou força, inclusive instigada pelo verdadeiro autor.

Tão logo o Juca ficou sabendo de que estava sendo acusado, o que seria difícil provar ao contrário, resolveu fugir. Preferiu ser um fugitivo vivo que um inocente morto.

Montou um cavalo bueno que tinha e ganhou pra costa do rio.

Iniciou-se então, um voluntariado para ajudar a polícia. Todos queriam a cabeça do desconhecido.

Três dias depois do sepultamento, saiu uma patrulha a cavalo para fazer a busca.

Numa das escapadas fora do mato para chulear o movimento, Juca viu um cavalo que havia morrido há poucas horas. Astuto e inteligente arrancou da faca e cortou as quatro patas do animal, com canela e tudo, tirando também uns tentos da lonca. Levou para o esconderijo e lá riscou as canelas do morto de cima abaixo, tirando os ossos fora, mas deixando os cascos.

Com habilidade e conhecimento, confeccionou quatro botas e calçou no cavalo dele, que por sinal, o que tinha de bom, tinha de manso. Pensou num detalhe importantíssimo. 

Nas mãos ele calçou as botas das patas traseiras, com os cascos virados para trás e nas traseiras, colocou as botas das mãos do outro cavalo, também com os cascos virados. As botas todas costuradas com os tentos tirados da lonca. 

Serviço pronto e examinado, encilhou, deu uma cabresteada por dentro do mato para o animal se acostumar e esperou a noite chegar. 

Pegou a várzea, sempre costeando o mato, atravessou o rio e foi sair numa estrada do outro lado. Já quase clareando o dia  por ela se foi, não encontrando viva alma, por sorte.

Passava por algum rancho e apesar da cachorrada sair nele, ninguém abria a janela para uma espiada sequer.

No outro dia, já de tardezita, a patrulha andejava pela mesma estrada em que o Juca havia passado na madrugada e chegando num dos ranchos, indagou se não tinham visto um sujeito assim, assim e assim, dando as características do suposto criminoso. 

Ninguém soube informar nada, apenas um dos moradores disse que na madrugada passada ouviu os cachorros acoarem em alguém que passou na estrada e quando clareou o dia, viu que tinha rastro de cavalo em direção ao rio. A patrulha conferiu os rastros e voltou. Só podia, as botas do cavalo do Juca estavam com os cascos invertidos.

Anos mais tarde, apesar da melena tordilha, foi reconhecido num comércio de carreira, já com o cavalo sem as botas. Não foi preso, haja vista as provas que revelaram o verdadeiro criminoso, o qual ainda permanecia na cadeia.

Graças à justiça, a sua inteligência e astúcia, o sapateiro de cavalo viveu ainda muitos anos de bem com a sociedade, num rancho modesto, mas com dignidade.