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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

MILICIANO

Desenho de Felício Agostini Lampert


Trazia no corpo um resto de farda
a perna quebrada de um golpe de bala
melena comprida emendada com a barba
no mesmo balanço das franjas do pala

Magro e mancando ainda vinha de tiro
o velho cavalo seu tanque de guerra
que tal como ele voltava ao retiro
de missão cumprida em defesa da terra

Rasgavam as coxilhas pontaços de lanças
em longas batalhas ou curtos combates
e o homem da guerra com toda pujança
firmava o garrão pra esporear o rebate

E a guerra passou pra ficar na história
e no miliciano só as cicatrizes
qual tatuagens trazendo à memória
as lutas ferrenhas que firmaram as raízes


terça-feira, 24 de novembro de 2015

PEQUENO MONARCA


Chegou faceiro da escola
o piá gritando o motivo
passei, eu passei de livro
e já posso ganhar o petiço
me esforcei para isto
vocês fizeram promessa
e agora tenho pressa
de botar ele no serviço

Tirando do corta-passo
abriu o seu boletim
e foi lendo para mim
corrido e não soletrado
aprovado, aprovado
é isto que tá escrito
eu me agarrei no piazito
e disse um “sim” engasgado

Olhei para minha velha
e vi que também chorava
no avental enxugava
as lágrimas da emoção
nós três e o outro irmão
nos juntamos num abraço
acelerando o compasso
no bater do coração

Parabéns meu doutorzinho
disse ainda abraçado
o petiço tá comprado
amanhã tu buscas o bicho
e já passa no bolicho
lá da comadre Tereza
que tem pra ti uma surpresa
encomendada a capricho

Ah! Ah! a curiosidade
sarneu desde àquela hora
a mãe e o mano explora
ficam de bico calado
que será o encomendado
a pergunta é repetida
e a noite foi mais comprida
porque passou acordado

Nem quis tomar o café
pegou um freio no galpão
e no meio da cerração
se divulgava a figura
um homem em miniatura
faceirito com o presente
aquele ser inocente
com sua alminha pura

Gritou da estrada oh! de casa
a voz saiu meio rouca
o coração pela boca
queria saltar pra fora
vizinho chegou a hora
eu vim buscar o petiço
já batizei de Feitiço
na minha vinda agora

Fez questão de botar o freio
mesmo na ponta do pé
era metido o garnisé
pulou e montou sozinho
com a mão fez um carinho
dando um tapinha na anca
botou no bolso as tamancas
e carreireou no caminho

A boca lá nas orelhas
com as canjicas de fora
fazia o garrão de espora
cutucando o petiço
dizendo vamos Feitiço
pacholeou numa esbarrada
ficando a marca na estrada
bem na frente do bolicho

Guaiaca, bota e espora
bombacha e chapéu de pano
pra ficar igual ao mano
o piazito pachola
era bueno de cachola
comportado e obediente
sendo a razão dos presentes
seu interesse na escola

No seu petiço montado
este pequeno monarca
traz na sua própria marca
uma ânsia de aprender
e porque não se dizer
que um piá desta estampa
vai se agrandar neste pampa
na Estância do Saber


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

POIS É, TALVEZ, QUEM SABE?

Foto de Betania Marques de Moraes
Morava nas taquareiras,
peleando com a própria sina,
porque um dia sua china,
lhe traiu com um conhecido.
Viveu o resto da vida,
encharcado na bebida,
o descornado marido.

Apesar de ser purgante,
era um pobre vivente
e filho de boa gente,
como o povo dizia.
Mas será que a traição,
não foi a principal razão,
pela qual ele bebia?

Pois é, talvez, quem sabe?
Ninguém se importou com isto,
só enxergaram o vício,
naquele negro coitado.
Nunca lhe olharam por dentro,
pra descobrir o sentimento,
de viver embriagado.

Um dia o patrão do céu,
mandou que ele subisse
e com certeza alguém disse,
descansou o pobre negro,
que viveu sem ter um teto,
sem amor e sem afeto
e carente de um aconchego.

Seu rancho foi a ramada,
no meio das taquareiras.
Viveu a sua maneira,
no acampamento simplório,
onde apagaram as brasas,
daí levado pra casa,
pena que foi pra o velório!

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

SEM DÚVIDAS

Como não acreditar,
ao contemplarmos este céu azul,
que Deus é gaúcho
e foi Piá aqui no sul?

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

NA PAZ DE UM RANCHO


Apesar dos trancos que a vida lhe deu, traz um semblante tranquilo, olhar humilde e um sorriso sincero no rosto negro que contrasta com a moldura branca da barba e dos cabelos encarapinhados.

Quando veio ao mundo, já nasceu livre, apesar de sua mãe ter dado à luz nos aposentos de uma antiga senzala.

Não sabe sua idade certa, mas isto não é culpa sua e sim de quem extraviou os papéis, como diz.

Muitas pipas de água, muitas lavouras carpidas, muita lenha cortada, muitas idas e vindas pela vizinhança, muitos passeios com a sinhá e a sinházinha, quando atrelava o tordilho gordo e marchador na aranha verde com o rodado branco. Lembra que se entretia com as sombras das sombrinhas das duas que se projetavam no chão a rodopiar, ao longo do trajeto.

É dono de uma memória invejável, muita lucidez e ainda uma vitalidade física, talvez em consequência do bom apetite que dispõe.

Tonico, como era chamado no tempo de guri, agora transformara-se naquele ancião experiente, simpático, querido e carinhosamente tratado por tio Nico.
        
Sua paixão de adolescente ainda mora com ele, no mesmo rancho que acolheu aquele casal cheio de amor e ali criaram e educaram meia dúzia de filhos.

Como tantos, por este mundo de Deus, estão aposentados e moram só os dois, tendo como companhia, um cusco que late ferozmente quando algum estranho chega, ou amistoso abanando o rabo para os conhecidos e um galo peito duplo, que além de anunciar a madrugada, cacareja junto às galinhas na hora que alguma põe.

Dona Dita, sua eterna namorada, apesar de um pequeno problema no joelho, o que lhe faz portar um bastão, cultiva uma hortinha cercada de taquaras lascadas, cerca esta feita e frequentemente reparada pelo marido. Ali, misturam-se verduras, chás, pimenta, arruda, enfim, um rodízio conforme a época de cada planta.

Tio Nico também não fica pra trás, tem uma lavourinha no costado da horta que dá gosto de ver. A enxada ainda corcoveia no vai e vem da capina, não dando alce à sujeira, naquelas mãos que muito tiraram o sustento da terra para a família.

A energia elétrica ainda não chegou por lá, porém um “radinho de pilha” ressonga diariamente, principalmente à tardinha, quando gerveia com sua prenda em frente ao rancho.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

NA ESPERA

Domingo “matiei” solito,
segunda-feira também.
Terça só uns três mates,
na quarta não tinha ninguém.
Quinta dois e mais dois,
sexta chegou a prenda:
- O resto conto depois !


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

BATENDO CAROÇO

Foto de Ariomar F. Martins (o atleta é o meu pai, seu Antão com 95 anos de idade).

Um balim de referência,
quatro rigas e quatro lisas,
campo fora sem divisas
ou num plano do terreiro,
de mano ou de companheiro
velhos tronqueiras e moços,
vão batendo caroço
por canha ou por dinheiro.

A bocha vale dois pontos
e a partida vinte e quatro.
Numa tábua com buracos
que tem a numeração,
é feita a marcação
pelo próprio bolicheiro,
naquele placar campeiro
que todos prestam atenção.

Assim é o jogo de bocha
no reduto de um bolicho.
Por dinheiro é no capricho
e mais atenção no jogo,
que se inflama e pega fogo
no decorrer da partida,
por vezes as bochas medidas
pra se evitar algum logro.

Se o trato é por um trago,
o jogo é mais folgado,
vai deslanchando flauteado
com alarido e torcida.
A bocha é curta, é comprida
e patacoadas da hora
e muitos que estão de fora
dão piruadas na partida.

Bate a do ponto pra seis
diz um parceiro pra outro.
Deixa pra mim que sou canhoto,
responde quase num berro,
eu atiro como quero,
pacholeia bem afoito,
vou trocar ela pra oito
porque pra o fora não erro.

A bocha fica no ninho
e a partida está ganha,
vem logo o liso de canha
que bebem se divertindo.
Quem ganha flauteia rindo
em meio ao alvoroço,
é assim que batem caroço
pelos bolichos aos domingos!


sexta-feira, 25 de setembro de 2015

GENTE, OLHA O SINAL !

Foto de Giancarlo M. de Moraes

A primavera no seu dia
chegou bem “enferruscada”
e pra banda da madrugada,
a chuva então se veio
e muita água caía,
mais do que era preciso
com ventania e granizo
num temporal muito feio.

Hoje se fala no El Niño
e em La Niña também,
a natureza porém,
está respondendo a agressão.
Tomamos outros caminhos,
talvez por míseros vinténs,
alguém sempre culpando alguém,
mas que diacho: e a razão?

Temo-nos por mais inteligentes,
de todo o reino animal,
então porque afinal
querer tirar o corpo fora?
Sejamos todos conscientes
e entendamos o sinal
que o Patrão Celestial
já “nos’tá” fazendo há horas.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

SIÁ LAURINDA

Morreu a Siá Laurinda
sem saber qual sua idade
sem conhecer a cidade
sem ter filhos nem marido
com o coração repartido
entre o amor e a bondade

Ninguém sabia de onde
era sua procedência
mas conheciam sua ciência
através das benzeduras
dos chás e de suas curas
pela Divina Providência

Miles de partos atendeu
sem cobrar nenhum tostão
nem nunca deixou pagão
a quem por suas mãos viu a luz
e sempre em nome de Jesus
abençoava o cristão

(. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .)

Hoje as daninhas tomam conta
da farmácia do terreiro
seu consultório campeiro
só com a metade em pé
onde as curas pela fé
não quiseram ter herdeiro

Com certeza Siá Laurinda
descansa no céu agora
talvez relembrando a flora
que usou em sua medicina
e na Querência Divina
faz chá pra Nossa Senhora

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

... DAS HORAS


Tem horas que a gente vive
e tem horas que a gente sonha
tem horas que se tem orgulho
e tem horas que se tem vergonha

Tem horas que nada serve
e tem horas que nada presta
tem horas que nada falta
e tem horas que nada resta

Tem horas que a coisa é errada
e tem horas que a coisa é certa
tem horas que a coisa folga
e tem horas que a coisa aperta

Tem horas de alegria
e tem horas de amargura
tem horas que tudo é dor
e tem horas que vem a cura

Tem horas que tudo vem
e tem horas que tudo vai
porém em todas as horas
estamos nas mãos do Pai

domingo, 2 de agosto de 2015

DAS NOITES E TROPAS

Foto de Giancarlo M. de Moraes

Quantas noites mal dormidas
com a carcaça molhada
por corredores e estradas
tropeando aqui e ali
foram cavacos da lida
de uma infância sofrida
da qual herdou o guri

Noites de ponchos e pelegos
geada e fogo-de-chão
também noites de verão
de estrelas e lua cheia
noite escura e ronda braba
quando o cansaço desaba
e o sono vem e boleia

Longas foram as jornadas
com seu avô e o pai
e assim como tudo vai
foram-se também as prosas
e nas noites quase sem fim
passava o vento clarim
ecoando notas penosas

E hoje de barba branca
recordar é o que lhe resta
quando a saudade molesta
o que não cicatrizou
e no baú da lembrança
é onde guarda a herança
que de tropear lhe tocou

sábado, 25 de julho de 2015

TEMPO CABORTEIRO



Encosta os tições Juvêncio,
que a noite vai ser baguala,
só tenho meu velho pala,
um pelego e a badana
e pra não melar de novo,
vou ajeitar perto do fogo,
um arremedo de cama.

O dia foi tenebroso,
desde cedo meu parceiro,
este tempo caborteiro,
me guasqueou com seu açoite,
mas com o calor da chama,
neste improviso de cama,
vou pelear com o frio da noite.

Amanhã depois do mate,
eu me boto na estrada,
cedito quebrando a geada,
pra chegar no meu rincão,
então na noite brasina,
terei o calor da china,
sem ter que dormir no chão!

“Oiga” tempo caborteiro,
que congela até os ossos,
mas com fogo, mate e china,
dá o tempero que gosto!

domingo, 12 de julho de 2015

FOI-SE COM O TEMPO




Passaram carretas e mais carretas na estrada. Nas casas moraram pessoas e mais pessoas.

Na estrada cada carreteiro com seu destino e nas casas cada pessoa com sua história.

E na carga das carretas iam se ajeitando as quitandas e nas casas as moças espiavam pela janela os carreteiros. Por baixo das carretas, os cuscos tranqueavam assoleados e os das casas, saiam para a estrada pra pelear.

E os bois na estrada, cutucados pela picana de taquara, puxavam preguiçosamente a carreta e nas casas, os bois ruminavam no potreiro, à sombra das taquareiras. 

Na estrada, a fumaça dos palheiros serpenteava em direção ao céu e nas casas, a fumaça dos fogões esgueirava-se por entre o galpão e o arvoredo.

Na estrada, a voz cantada do carreteiro chamava a junta da ponta e nas casas o canto de uma mãe fazia a cria dormir.

E na estrada, hoje, a carreta não passa mais e nas casas as moças não espiam mais na janela e os cuscos latem por trás da tela.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

CHIMARREANDO COMIGO

Nas horas que chimarreio,
na companhia de mim,
o pensamento faz um passeio,
naqueles tempos que vim.

Minh’alma rejuvenesce,
com a seiva verde espumosa.
É um ritual tal uma prece,
do meu eu comigo em prosa.

A bomba me traz a essência,
enquanto percorro a consciência,
mesmo estando alheio.

E ao secar a cambona,
a cuia ronca chorona,
findando assim o passeio!

quarta-feira, 10 de junho de 2015

O PEÃO E A LIDA


Foto de Carlos Alberto Tatsch




A lida de um peão solteiro
pelas fazendas do pago
é dura mas sempre há tempo
pra uma volteada e um trago
procurar um rabo de saia
na hora de um afago
prosear com os parceiros
carrerear os parelheiros
espairecendo os encargos

Tirar leite na mangueira
quebrar queixo de aporreado
se perder coxilha afora
no feitio de um alambrado
lavrar terra sem trator
com boi zebu aluado
dar boia pra criação
prestar contas pro patrão
sobre a situação do gado

Carnear e curtir o couro
estaqueado com taquara
aproveitar o tempo bom
prender fogo numa coivara
ir na venda pra Patroa
isto não é coisa rara
e quando recebe os pilas
dar uma volta na vila
pois quem ta vivo não para

Cortar lenha de machado
tirar palanque no mato
nos dias que está chovendo
lidar nas cordas com tato
pra refazer os estragos
da lida e dente de rato
também reunir o rebanho
naqueles dias do banho
pra controlar os carrapatos

E para a banda da noite
busca o abrigo do galpão
pra dar um jeito na boia
e sorver um chimarrão
depois se espichar num catre
onde vem recordação
da prenda lá do povoado
e o namoro alinhavado
na borda do coração

quarta-feira, 6 de maio de 2015

TROVADOR SARARÁ

Num comércio de carreiras
conheci o tal Rosalino
um sarará teatino
domador e bom na trova
tinha na cara uma cova
herança de um três listas
um rasgo arriba da vista
vestígio de alguma sova

Chapelão com vincha escura
nas orelhas desabado
um lenço bem colorado
já com as franjas esfapiadas
bota campeira esfolada
bombacha preta bem ruça
mas um sorriso na fuça
de ganhar qualquer parada

Se achegou para a copa
cabresteando uma ruana
num gesto pediu uma cana
que golpeou num talagaço
e com a cana do braço
meio que enxugou o bigode
e no cavanhaque de bode
ajeitou o barbicacho

Até me agradei do taura
pelo seu jeito simplório
e provoquei seu repertório
com um verso no repente
e já no mas o vivente
tapeou na testa o chapéu
e levantando a mão pra o céu
saudou o povo presente

Tinha ternura na alma
e um timbre que dava gosto
a alegria no rosto
e um compasso bonito
mirava o infinito
sendo o dono de si
e até lhe convenci
pra que trovasse solito

E assim foi o sarará
tarde a dentro na porfia
e prometeu que outro dia
voltaria outra vez
gostei da sua altivez
e abracei diante do povo
pois se ele vir de novo
talvez eu trove - talvez