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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

"RECUERDOS"

Foto de Giancarlo M. de Moraes

As nuvens num fim de tarde
galoparam pra o infinito
e eu mateando solito
galopei num devaneio
no pensamento me veio
recuerdos da minha infância
quando tinha aquela ânsia
de ver querências bem longe
conhecer pagos sei onde
de encurtar as distâncias


Me vi no colo da mãe
do pai do vô e da vó
ouvi até o corococó
do meu galo garnisé
a pena de caburé
fincada no meu chapéu
vi a regeira o sovéu
e uma garra de pelego
lembrança de um borrego
que me deu muito boléu


Me vi um guri descalço
calça curta de tirante
uma cinta de barbante
que veio atando o pacote
de um freio e um serigote
comprados de um andarilho
pra encilhar um potrilho
da doma de meu padrinho
cavalo flor de mansinho
como deu bueno o tordilho


Vi as casas, vi o terreiro
me vi dentro da mangueira
vi a vaca mais leiteira
vi o apojo nas canecas
angolistas, as marrecas
vi os porcos e as galinhas
e a petiça “gauchinha”
de orelha tesa e ligeira
quando estalava a soiteira
botando as vacas à tardinha

Me vi braceando no açude
e pescando lambaris
um casal de bem-te-vis
cantando dentro da tarde
vi os gansos num alarde
se demonstrando com entono
pra dizer quem era o dono
do território naval
numa tarde divinal
dessas que fazem no outono


Eu vi a água da sanga
bebi na concha da mão
soltei os meus pés no chão
na tabatinga vermelha
vi um enxame de abelhas
num oco se aquerenciando
vi o carneiro martelando
mandando água pras casas
e numa parte mais rasa
lambarizinhos prateando


Me vi frequentando a aula
na escola municipal
recém botando o buçal
das contas e do alfabeto
sentado num canto quieto
sempre atento e obediente
e no quadro lá na frente
a professora Manoela
não tinha arreglo com ela
quando ralhava com a gente


Vi o balcão do bolicho
e também vi as prateleiras
vi as louças e chaleiras
enxadas, pás e machados
palas e ponchos pendurados
lampiões da marca aladin
chapéus, bombachas, selins
tecidos, linhas e rendas
e a guria da venda*
que eu queria pra mim
* hoje minha esposa


Vi a carreta na sombra
descansando no muchacho
ovelhas deitadas embaixo
e folhas secas por cima
vi a terneira brasina
de barbilha no focinho
vi um casal de canarinhos
na casa do João-de-barro
e o vô pitando um cigarro
de um fumo amarelinho


Vi meu pai jogando bocha
campo a fora e na estrada
me lembrei de uma bochada
que acertou numa “periá”
eu vi o caraguatá
que a coatiara se escondia
também vi as melancias
na lavoura do vizinho
e o canivete fininho
que as mais maduras partia


A infância foi me passando
como um filme na tela
verso da vaca amarela
e causos do Malazarte
os compromissos, as artes
com os guris da vizinhança
pescarias e melanças
e mangueiras no terreiro
sendo o maior fazendeiro
na fantasia de criança


Um relincho de cavalo
me despertou num repente
vim de volta ao presente
limpei os olhos escorrendo
senti o coração batendo
num compasso diferente
as lágrimas saem da vertente
quando a saudade nos bate
e ao encher de novo o mate
a água já não estava mais quente


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