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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

CAMBONEANDO




Estirado contra a parede na sombra do oitão do rancho, ressonava meu cachorro depois da lida de campo. Eu também tava sovado e tinindo por uma camboneada.

Juntei os tições com uma cachopa de palha, abanei com o chapéu avivando o fogo. Meia dúzia de minutos e tava cevado o mate.

Puxei um cepo e sentei perto do cusco, que levemente mexeu a cola como a me dizer: relaxa! Ali fiquei sugando a cambona enquanto o pensamento gauderiava pelo sem fim da memória. Meu cusco dava sintomas de que também andava longe dali.

Contemplei no horizonte as nuvens se juntando num rodeio de matizes como uma grande colcha de retalhos se estendendo sobre o sol que foi se achatando enquanto a sombra do oitão se espichava.

Roncou a cuia, secou a cambona, voltei a mim e cutuquei o cusco.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O SONHO DO VENTO

Foto própria

O vento calmo do fim da tarde convidou a taquareira pra dançar. Preguiçosamente seus cabelos se balançaram perdidos no compasso de uma dança lenta e de uma música surda.

Um bando de pássaros, hóspedes da noite, chegou num grande alarido para ocupar as “suítes”, sem perceber que atrapalhava o clima romântico vespertino.

Com isso, num repente, o vento irritado soprou mais forte, a cabeleira tornou-se esvoaçante e mesmo contrariada, a dança continuou num novo ritmo.

O sol retirou-se do “salão”, dando lugar à lua que com sua delicadeza e luz de prata, vagarosamente foi deixando as nuvens para que os dançarinos voltassem praquele sonho romântico.

O vento ignorando a bondade da lua extravasou sua ira em rajadas mais fortes, trazendo pesadas nuvens escuras e carregadas, dando fim ao sonho que não chegou a ser sonho, sem que a convidada tivesse culpa.
     

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

EU POR MIM


Sou descendente de campeiros
e de chinocas valorosas
criado nos galpões de prosas
com humildade e obediência
e este jeito carrancudo e meio rude
não faz que eu mude 
a bondade da alma
nem perca a calma 
ou o rumo da querência

Se fui criado lá fora
não quer dizer que sou grosso
e o lenço no meu pescoço
até hoje estou usando
não interessa a cor que nele eu trago
amo meu pago 
e para mim não faz sentido
ver inimigo 
em Maragato ou Chimango

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

DO CANTINHO DA MEMÓRIA

Foto de Jorge Luiz Laranjeira


Como era bom naquelas tardes de domingo,
que a gurizada se juntava pra brincar,
correr carreira em petiços de taquara,
virar “cambota” na areia e se rolar.

Como era bom preparar bem um caniço,
encher um porongo de minhocas e ir pescar,
molhar o barranco lá da sanga do potreiro,
deitar no barro pra depois se “resbalar”.

Como era bom trançar um laço de embira,
o doze braças ferramenta do campeiro,
de tardezita quando o sol dependurava
era uma farra para prender os terneiros

Como era bom sair melando lixiguana
e correr lebres de folia com a cuscada,
calar a faca numa melancia madura,
mais saborosa quando ela era “roubada".

Como era bom naquelas tardes chuvisquentas,
lá no galpão muita galhofa e brincadeira,
fogão campeiro engasgado de angico,
e o bolo frito abarrotando a frigideira.

Como era bom depois que a chuva passava,
ir pra janela que tinha no oitão da casa,
como era bom ver passarinhos e galinhas,
no “já-te-pego” com as formigas de asa.

Como era bom nas noites de lua cheia,
quando a cuscada não parava de uivar,
sempre saía um “corajoso” para fora,
pra ser mais homem e depois se pacholear.

Como foi bom ter vivido assim lá fora,
e hoje ter algumas coisas pra contar,
que se aninham num cantinho da memória,
e que nos fazem ora sorrir, ora chorar!

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

TEMPLO CAMPEIRO



Ao entrar em ti galpão
que sobrevive no tempo
foi como entrar num templo
com picumã e fumaça
onde o atavismo da raça
sustenta-se nos esteios
trazendo velhos anseios
para o gaúcho que passa

Teu piso de chão batido
rasqueteado de vassoura
chamuscado da salmoura
e cinza como tempero
cama do laço campeiro
lugar de paz e sossego
onde se estende um pelego
sobre a carona e o baixeiro

O pai-de-fogo de angico
mantendo o fogo-de-chão
é o próprio coração
a crepitar sobranceiro
benevolente e hospitaleiro
sem distinguir procedência
cor de lenço ou preferência
a acolher o campeiro


Teus esteios tem o cerne
igual ao do pai-de-fogo
que descartam o malogro
e te sustentam seguros
velho galpão pelo duro
de mate prosa e encilha
onde a Chama Farroupilha
fumaceia pra o futuro

Foi num passado distante 

que um ancestral acendeu 

e o fogo jamais morreu 

queimando no mesmo chão 

uma legenda de galpão 

a fumacear sem descanso 

ora bravo ora manso 

secular fogo-de-chão



Trazes na tua fumaça
o velho incenso campeiro
a exalar de um braseiro
como o sangue escarlate
derramado nos combates
quando o gaúcho peleou
e depois pra ti voltou
pras calmas rodas de mate

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

REBENQUEANDO A SORTE


Foi rebenqueando a sorte
que viveu o velho Tenório
era um mulato simplório
de fibra e caráter forte
peleava até com a morte
pra defender seus direitos
tinha lá os seus defeitos
que carregava consigo
mas pra servir um amigo
também tinha lá seu jeito

Homem calmo e pouca fala
de confiança e de palavra
tinha descendência escrava
remanescente das senzalas
um grande saber na mala
modesto e respeitador
nas lidas um professor
seriedade e fino trato
mas mesmo assim o mulato
foi deserdado do amor

Um taura das madrugadas
e das noites de serões
no aconchego dos galpões
ou nos tapetes de geada
um centauro nas estradas
na condução de uma tropa
tinha por quincha a copa
de um chapelão bem bagual
e um poncho marca Ideal
de deixar o frio na toca

A muitos patrões serviu
com presteza e honestidade
mesmo com o avanço da idade
os tropeços resistiu
foi como água de um rio
fertilizando a terra
foi combatente em guerras
foi um herói sem medalha
silenciando qual metralha
conforme a luta se encerra

Hoje o mulato descansa
talvez sendo o peão caseiro
num cemitério campeiro
lá no fundão da estância
como alguém sem importância
sem norte e sem razão
sem uma cruz com a inscrição
pelo menos com as iniciais
sendo um torrão a mais
a confundir-se com o chão

terça-feira, 20 de agosto de 2019

C R A M E N T O

Com este poema, homenageio todos os amigos de origem italiana, pelos quais tenho muito carinho.


Desenho feito no Paint do Windows



Tió, vá que:
- falte o salame
a vaca non dê leite
dê pouco radiche
rance o azeite
o porco non dê banha
a véchia non me aceite

Tió, vá que:
- seque todas pipa
azede a sardinha
falte a polenta
mofe a farrinha
tenha pouco ovo
pesteie a galinha

Tió, vá que:
- os filhos cresçam
e tomem as rédia
a conta no boliço
passe da média
má se pega fogo no lambique?
- Cramento que baita trazédia!

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

ETERNO SONHO



Foto própria

Trabalhava na estância
a filha de um posteiro
moça de poucos janeiros
e com jeito de criança
no cabelo duas tranças
como noite sem luar
tinha um balanço no andar
e nos seus passos maciez
a cor do bronze na tez
e duas estrelas no olhar

De beleza sem igual
sem precisar de pinturas
como um ser das alturas
com um dote angelical
e um jeito divinal
parecendo uma fada
que pra ela não foi nada
em se tratando de amor
comparando-se a uma flor
que não foi desabrochada

Pela escolha proibida
guardou a sua paixão
e só a voz do coração
por ela era ouvida
deixando viva a ferida
sem o amor pra curar
e seu eterno sonhar
de ter um rancho e filhos
apagou aquele brilho
de estrelas no olhar

sábado, 10 de agosto de 2019

MOSTRANDO AS UNHAS


O amigo é aquele,
que na hora mais precisa,
veste a mesma camisa
que tem o seu companheiro.
Só chamar de parceiro
quando tudo está na boa,
é pior que uma leitoa
que come pinto no terreiro.

Quem é falso se declara,
assim sem fazer alarde
e mais cedo ou mais tarde,
bota as unhas pra fora
e o outro ele explora,
achando que é sabido,
porém no fundo é mordido
pela sua própria espora.

Se tiras teu corpo fora
pra não defender o amigo,
ninguém ficará contigo,
pois nenhum vai te querer
e esse teu falso ser,
que te ilude e te fascina,
irá junto na latrina
quando aquilo descer.

sábado, 3 de agosto de 2019

BOM NA TROVA DANÇADOR E FEIO


Cabresteando a meu jeito
me achego pro parapeito
pra uma encilha no gateado
folga do fim de semana
tirar um pouco da escama
e retouçar no povoado

Bisbilhoteio a guaiaca
passo em revista as patacas
glostora e água de cheiro
pilcha nova bem pintoso
boto no pingo um toso
não sei qual o mais faceiro

Traquejo na aparência
vou prestar minha continência
lá no balcão do bolicho
boleio a perna faceiro
saudando o bolicheiro
com um verso no capricho

O violão levo comigo
pra acompanhar os amigos
num entrevero de trova
depois na hora da dança
até minh'alma balança
e o esqueleto se sova

Em meio a poeira e a fumaça
até nem sei se o tempo passa
a lida deixo de lado
e se levo algum carão
não arrumo confusão
sei que sou mal desenhado

Sigo firme no embalo
aproveito e tiro o talo
dos dias que estou solito
se a prenda me dá confiança
peço de novo outra dança
e se facilitar repito

São poucas horas no povo
mês que vem to aqui de novo
pra mais um saracoteio
pois pra um peão que é bom de dança
sempre sobra alguma trança
embora que seja feio

Parece que a noite encolhe
e entre uma dança e um gole
desponta a madrugada
um fim de baile se anuncia
e na garupa do dia
sigo meu rumo na estrada


quinta-feira, 1 de agosto de 2019

CARRETEANDO


Minha carreta está acima de setenta!
      - Mas como, se o passo dos bois, puxando uma carreta, não ultrapassa esta velocidade?
      É que ela está acima de “setenta anos” na estrada da vida. Os bois, não são mais os mesmos de quando nasci, não são os mesmos de quando eu estudava, não são os mesmos de quando eu trabalhava... São bois lerdos e gordos, mas continuam levando a carreta em frente, agora, com menos carga e mais experiência.
      Nestes anos, vem deixando um rastro claro, limpo e fácil de seguir. Nunca esteve atolada, pois, o carreteiro sabe escolher a estrada. Alguma derrapada, algum arranhão, alguma manutenção foram feitas e serão necessárias para que consiga chegar ao fim da jornada, designada pelo Patrão Maior, junto à família e amigos.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

TROTE DA ESPERANÇA



Foto própria


Um desacerto com o patrão
por lambança de outro peão
por muito pouco quase nada
deram apoio ao lambanceiro
e mandaram que o campeiro
pegasse logo a estrada

Meia dúzia de patacas
se ajeitaram na guaiaca
pagamento do patrão
saiu sem ter despedida
porém de cabeça erguida
com consciência e razão

Na calma da madrugada
sobre o lençol da geada
o quero-quero num grito
rasgou o silêncio do campo
e montado num pingo ao tranco
ia o vivente solito

Chapéu negro de aba larga
esporas cosquilhando a ilharga
enroscadito no pala
só se via o nó do lenço
um palheiro fumacento
e um fiambre recheando a mala

Já com horas de estrivo
cavalgava pensativo
deixando o rastro na estrada
desta vez ia solito
floreando um assobiozito
mesclado com as baforadas

Há algum tempo passado
por ali foi noticiado
que a Estância Santo Hilário
tava de porteira aberta
tinha pegada na certa
muita doma e bom salário

E pra lá tomou o rumo
pra seguir mantendo o prumo
de um peão que entende da lida
e sem chorar as pitangas
deixar de viver de changas
mudar de sorte e de vida

Com o sol já no horizonte
ao trote cruzou a ponte
do velho rio Camaquã
então vencida  a distância
deu Oh! de casa na estância
com esperança no amanhã

quarta-feira, 24 de julho de 2019

UNS E OUTROS

Foto própria

Uns reclamam da seca
outros reclamam da chuva
uns se queixam da lagarta
outros se queixam da saúva

Uns detestam o frio
outros detestam o calor
uns não cuidam da saúde
outros se queixam da dor

Uns tem nojo dos outros
outros tem nojo de uns
uns não gostam de muitos
muitos não gostam de alguns

Uns tem cara de bom
outros tem cara de mau
uns tem caras honestas
outros tem cara de pau

sexta-feira, 12 de julho de 2019

MINHA PÁTRIA SULINA

Foto de Paloma


Quando um laço corta o espaço
no entrevero de um rodeio
é o Rio Grande num floreio
se espichando qual baraço
e sai na força do braço
relembrando as campereadas
se abrindo numa armada
pra mais um tiro seguro
deste pago pelo duro
orgulho da gauchada

Laça a prenda laça o peão
gurizada e veteranos
todos dão mostra do pano
numa grande comunhão
na parceria de irmãos
cangados por um ideal
tendo no ponto cardeal
a mesma direção
a conduzir a tradição
de um Rio Grande bem bagual

Lenços brancos e colorados
e chapéus tapeados ao vento
és Tu Rio Grande pacholento
na tradição irmanado
e um coração agrandado
pulsiona o sangue farroupilha
pra seguir na mesma trilha
dos que nos antecederam
e que por Ti muitos morreram
peleando em Tuas coxilhas

Pra Ti minha Pátria Sulina
rendo mais uma homenagem
e não me falta coragem
pra dizer com esta rima
que a Providência Divina
no seu sábio catecismo
instituiu o Teu batismo
pra teres a identidade
Liberdade Igualdade Humanidade
bravura e gauchismo